No dia 25 de Abril de 1974 tinha 23 anos e morava na Rua do Alecrim,
no último andar do prédio a seguir ao Palácio Quintela, cujas traseiras
dão para o jardim do Palácio e Rua António Maria Cardoso, avistando
parte do cinema S. Luís.
Não tinha o hábito de ouvir o rádio de manhã e não me apercebendo de
nada, desci para a R. da Prata onde trabalhava na antiga Companhia de
Seguros Ultramarina. Durante o trajecto, achei alguns movimentos
estranhos, as pessoas pareciam-me agitadas, diferentes, mas mesmo assim
continuei e entrei no local de trabalho.
Aí falava-se num golpe de Estado, das janelas viam-se tanques no
Terreiro do Paço. Comecei a achar a situação complicada. Lembrava-me do
meu tio ter sido perseguido pela PIDE. Interrogava-me a mim própria: E
se agora desatam todos aos tiros e temos aqui um banho de sangue? Deve
ser inevitável, vão começar a lutar uns contra os outros. Estarão todos
contra o Governo? Alguns começaram a dizer que tinham medo e iam para
casa, outros que iam ver o que se passava.
Os tanques começaram a subir a Rua da Prata, os soldados e o povo que
já se juntava a eles, ao passar em frente da Companhia, gritaram:
Fascistas, fascistas, fascistas! Uma Colega grávida começou a gritar,
branca como a cal da parede. Na minha aparentemente calma gritei com ela
que quase desmaiava: ou te calas ou dou-te um par de estalos… olha a
criança, como é que eu te tiro daqui se te dá alguma coisa? Consegui
acalmá-la e entretanto chegou o marido que a levou. O meu veio um pouco
depois. A Administração mandou fechar a Companhia e irem todos para
casa.
Andei por becos e travessas onde havia pouca gente, mas lembro-me bem
de ver o alcatrão da Rua da Prata todo rebentado pelas lagartas dos
tanques.
Chegada a casa já estávamos todos e devorávamos tudo quanto se
passava na televisão. Conforme os pontos-chave iam sendo ocupados,
parecia uma vitória. Começaram a aparecer os cravos e o meu pai sempre
tão calado parecia satisfeito. Eu pensava: se isto resultar, talvez o
meu irmão não vá para a guerra, já me bastava terem ido os amigos.
Durante a tarde desse dia, por volta das 16 horas, ouviram-se tiros e
o meu marido lembra-se como se fosse hoje de um homem que descia a Rua
ter sido atingido mortalmente. Antigamente havia uns terrenos onde hoje
existem os Terraços de Bragança, e o tiro veio da PIDE. Esse facto deu
conta do meu sistema intestinal e corria para a casa de banho que ficava
nas traseiras e cujas portadas foram fechadas por indicação do meu pai,
com ordens de ninguém acender a luz.
Pela Rua do Alecrim começou a subir uma multidão que gritava: morte
aos PIDES! Recomeçaram os tiros e houve mais mortes. Isso oiço ainda na
minha cabeça. Mal dormimos com receio de que soldados e PIDES andassem
em cima dos telhados, porque o desespero já era grande.
O dia seguinte revelou-se uma autêntica surpresa. Chegados à janela,
havia tanques no Camões, tanques ao fundo da rua, morteiros montados em
frente ao Palácio no Largo Barão de Quintela.
Nunca tinha visto morteiros e perguntei ao meu marido o que era
aquilo. A explicação deixou-me apreensiva. Ninguém passava na Rua e os
soldados não deixavam ninguém estar nas janelas. Comecei a pensar que os
morteiros podiam não ser certeiros e fazerem um buraco no nosso
telhado. A minha mãe achou que eu tinha razão e o meu pai começou a
ficar inquieto, o meu irmão com 15 anos estava menos consciente do
perigo.
O meu marido decidiu ir falar com os soldados para saber o que fazer.
Considerando que estávamos no último andar e os PIDES ainda não se
tinham rendido, poderia haver necessidade de dispararem. Fizeram uma
reunião e decidiram que seríamos retirados de casa com a sua protecção.
Assim foi feito, em fila indiana, um soldado para cada um, encostados
aos prédios e passando para o Largo Barão de Quintela onde o meu pai
tinha o carro estacionado.
Assim saímos dali, mas o curioso é que no resto da cidade a vida
parecia correr normalmente, com cravos vermelhos e risos abertos. Fui a
única pessoa que não trabalhou nesse dia, mas viu a sua falta
justificada pelos patrões apelidados de fascistas.