domingo, 26 de outubro de 2014

25 e 26 de Abril de 1974


No dia 25 de Abril de 1974 tinha 23 anos e morava na Rua do Alecrim, no último andar do prédio a seguir ao Palácio Quintela, cujas traseiras dão para o jardim do Palácio e Rua António Maria Cardoso, avistando parte do cinema S. Luís.
Não tinha o hábito de ouvir o rádio de manhã e não me apercebendo de nada, desci para a R. da Prata onde trabalhava na antiga Companhia de Seguros Ultramarina. Durante o trajecto, achei alguns movimentos estranhos, as pessoas pareciam-me agitadas, diferentes, mas mesmo assim continuei e entrei no local de trabalho.
Aí falava-se num golpe de Estado, das janelas viam-se tanques no Terreiro do Paço. Comecei a achar a situação complicada. Lembrava-me do meu tio ter sido perseguido pela PIDE. Interrogava-me a mim própria: E se agora desatam todos aos tiros e temos aqui um banho de sangue? Deve ser inevitável, vão começar a lutar uns contra os outros. Estarão todos contra o Governo? Alguns começaram a dizer que tinham medo e iam para casa, outros que iam ver o que se passava.
Os tanques começaram a subir a Rua da Prata, os soldados e o povo que já se juntava a eles, ao passar em frente da Companhia, gritaram: Fascistas, fascistas, fascistas! Uma Colega grávida começou a gritar, branca como a cal da parede. Na minha aparentemente calma gritei com ela que quase desmaiava: ou te calas ou dou-te um par de estalos… olha a criança, como é que eu te tiro daqui se te dá alguma coisa? Consegui acalmá-la e entretanto chegou o marido que a levou. O meu veio um pouco depois. A Administração mandou fechar a Companhia e irem todos para casa.
Andei por becos e travessas onde havia pouca gente, mas lembro-me bem de ver o alcatrão da Rua da Prata todo rebentado pelas lagartas dos tanques.
Chegada a casa já estávamos todos e devorávamos tudo quanto se passava na televisão. Conforme os pontos-chave iam sendo ocupados, parecia uma vitória. Começaram a aparecer os cravos e o meu pai sempre tão calado parecia satisfeito. Eu pensava: se isto resultar, talvez o meu irmão não vá para a guerra, já me bastava terem ido os amigos.
Durante a tarde desse dia, por volta das 16 horas, ouviram-se tiros e o meu marido lembra-se como se fosse hoje de um homem que descia a Rua ter sido atingido mortalmente. Antigamente havia uns terrenos onde hoje existem os Terraços de Bragança, e o tiro veio da PIDE. Esse facto deu conta do meu sistema intestinal e corria para a casa de banho que ficava nas traseiras e cujas portadas foram fechadas por indicação do meu pai, com ordens de ninguém acender a luz.
Pela Rua do Alecrim começou a subir uma multidão que gritava: morte aos PIDES! Recomeçaram os tiros e houve mais mortes. Isso oiço ainda na minha cabeça. Mal dormimos com receio de que soldados e PIDES andassem em cima dos telhados, porque o desespero já era grande.
O dia seguinte revelou-se uma autêntica surpresa. Chegados à janela, havia tanques no Camões, tanques ao fundo da rua, morteiros montados em frente ao Palácio no Largo Barão de Quintela.
Nunca tinha visto morteiros e perguntei ao meu marido o que era aquilo. A explicação deixou-me apreensiva. Ninguém passava na Rua e os soldados não deixavam ninguém estar nas janelas. Comecei a pensar que os morteiros podiam não ser certeiros e fazerem um buraco no nosso telhado. A minha mãe achou que eu tinha razão e o meu pai começou a ficar inquieto, o meu irmão com 15 anos estava menos consciente do perigo.
O meu marido decidiu ir falar com os soldados para saber o que fazer. Considerando que estávamos no último andar e os PIDES ainda não se tinham rendido, poderia haver necessidade de dispararem. Fizeram uma reunião e decidiram que seríamos retirados de casa com a sua protecção. Assim foi feito, em fila indiana, um soldado para cada um, encostados aos prédios e passando para o Largo Barão de Quintela onde o meu pai tinha o carro estacionado.
Assim saímos dali, mas o curioso é que no resto da cidade a vida parecia correr normalmente, com cravos vermelhos e risos abertos. Fui a única pessoa que não trabalhou nesse dia, mas viu a sua falta justificada pelos patrões apelidados de fascistas.