terça-feira, 18 de junho de 2019

A Arte de Comunicar ou o seguro de uma carroça


Em 1973 iniciei a minha actividade profissional na Companhia de Seguros Ultramarina, SA., localizada na Rua da Prata em Lisboa, depois de cinco anos de trabalho noutras áreas.
Fui admitida como aspirante e com período de experiência como era habitual nas várias Companhias que existiam na altura.
A minha vida profissional foi evoluindo e em 1974, depois do 25 de Abril, calculava prémios de seguros automóveis, punha clausulas, recusava seguros e atendia os Clientes.
A parte de atender Clientes era divertida porque era disputada entre Colegas sempre que alguém com um palminho de cara aparecia na recepção.
Uma jovem tinha sempre algum rapaz simpático que a ia atender e o mesmo acontecia quando aparecia algum engenheiro de olhos verdes que era disputado pelas jovens do Sector.
Um dia entraram porta dentro dois velhotes com um ar simples com a chamada boina portuguesa a cobrir a cabeça.
A situação era normal mas não parecia que houvesse de parte dos Colegas vontade de os atender.
Decidi-me e lá fui…
Depois da obrigatória Boa Tarde veio o óbvio:
-Em que vos posso ajudar? E os velhotes colocaram a boina debaixo do braço, respeitosamente, um ficando calado e respondendo o outro:
- Olhe menina eu queria fazer o seguro da minha carroça, fazem? É muito caro?
- Sim fazemos e não é caro!
Convém referir que naqueles tempos era vulgar vermos carroças cheias de legumes e frutas a caminho da Praça da Ribeira e depois de retorno aos arredores de Lisboa.
- Bem então vamos preencher a proposta de seguro que depois dará lugar à apólice que lhe será enviada pelo correio.
-Está bem menina!
Aquele menina soava-me engraçado, eu já tinha uma aliança no dedo. Peguei na proposta, numa esferográfica e perguntei:
- Quer o Senhor preencher ou preencho eu?
- A menina, se faz favor.
- Muito bem então eu vou fazendo perguntas e o Senhor vai-me dizendo o seu nome, morada…
- Sim menina, pergunte…
E assim fomos preenchendo até chegarmos aos riscos a cobrir… E digo eu muito convicta: 
- Qual o capital que pretende para o Risco de Responsabilidade Civil?
- Menina, o que é isso?
Rapidamente pensei, bem tenho que fazer isto de outra maneira, está visto que ele não sabe o que eu estou a falar.
 - Sabe são os danos que o Senhor causa aos outros, se bater num carro, num muro, se atropelar uma pessoa, o que nós chamamos os Terceiros…
- Pois, menina, é isso que eu quero que com um animal destes nunca se sabe!
Combinamos o capital a garantir e lá lhe expliquei que não cobríamos os Danos Próprios usando as palavras adequadas para que ele entendesse bem o que era.
Depois de tudo preenchido, perguntei se ele queria ler. Disse-me que não e então eu respondi que ia ler eu e se não estivesse de acordo com algo que me dissesse.
- Está tudo bem menina, é isso mesmo, muito obrigada!
Pedi-lhe então para ele assinar.
- Olhe menina eu trouxe este meu amigo para ele assinar, por mim!
O meu coração bateu mais forte. O Senhor era analfabeto mas na verdade era evoluído e eu não tinha até ali percebido.
Dirigindo-me a quem ainda nada tinha dito disse-lhe:
- O Senhor assina aqui a rogo com o seu nome e o seu amigo põe a impressão digital.

Esta foi para mim uma lição, seja com quem for que falamos temos que estar ao mesmo nível, ser educados, respeitosos, simples na forma de dizer as coisas. Não sabemos nunca se estamos perante uma pessoa que não sabe escrever o seu nome ou se estamos perante um administrador de uma empresa. Enquanto trabalhei procurei passar aos meus Colegas esta lição que eles ouviam com alguma curiosidade até porque entretanto as carroças foram desaparecendo para dar lugar a outros meios e a Praça da Ribeira já não é o que era!