sábado, 15 de maio de 2021



 

                            O que é um tio ou...

                             a inocência de uma criança...


Perdi um Amigo mas na teoria de uma criança eu perdi também um membro da Família.

Quando se tem uma amizade de cerca de 40 anos e um relacionamento profissional de mais de 30  é difícil  avaliar tudo o que se perdeu. 

O meu filho também perdeu um Amigo ou... um Tio.

Um dia, há muitos anos, o meu filho com três anos e meio, perguntou-me: - Mãe o Luís pode ser meu tio?

Olhei-o nos olhos e perguntei-lhe: - Tu sabes o que é um tio?

A resposta dele foi: - É uma pessoa de quem se gosta muito!

Não é bem assim disse-lhe eu, não é só isso. Ele olhou-me esperando a explicação.

Então muito calmamente disse-lhe que ele já tinha um tio e que esse tio era o irmão da mãe. Os irmãos da mãe ou do pai  eram tios como as irmãs da mãe ou do pai eram tias  e assim sendo, ele só tinha um tio porque o pai não tinha irmãos e a mãe só tinha aquele irmão.

Ele  era um miúdo  que ficava  calado a pensar nas coisas  e mais tarde voltava a fazer mais perguntas. 

Notando uma  certa desilusão avancei  mais um pouco e disse-lhe que ele podia  adoptar um tio, bastando para isso perguntar ao Luís, quando voltasse a estar com ele, se ele quereria ser tio dele.

A oportunidade  surgiu num  fim de semana durante um almoço.  O garoto estava nervoso e eu resolvi dar-lhe um empurrão perguntando-lhe se ele não tinha nada para falar com o Luís.

Enchendo-se de coragem lá perguntou: - Luís queres ser meu tio?

Claro que a resposta foi afirmativa o que resultou num sorriso de ambas as partes.

Foi assim que um tio foi adoptado passando a fazer parte da Família.

Com o tempo perdeu-se a inocência infantil e o  tratamento também mas nunca se perdeu a Amizade.

Eu, tenho um luto para fazer.

Perdi alguém que  muito me ensinou ou eu não teria sido a profissional que  fui.   Alguém com o dom de me levar a fazer o que queria,  deixando-me evoluir mas mantendo a minha  personalidade. Raro de encontrar, um profissional de excelência na área dos Seguros com uma grande capacidade analítica, visão de futuro e de gestão.

A  Amizade essa perdurará até ao dia em que nos reencontraremos numa outra dimensão.

Pode não ser assim mas agora eu quero acreditar que é.



 REST IN PEACE - Luís Silva  -  01.12.1938  -  11.05.2021




terça-feira, 18 de junho de 2019

A Arte de Comunicar ou o seguro de uma carroça


Em 1973 iniciei a minha actividade profissional na Companhia de Seguros Ultramarina, SA., localizada na Rua da Prata em Lisboa, depois de cinco anos de trabalho noutras áreas.
Fui admitida como aspirante e com período de experiência como era habitual nas várias Companhias que existiam na altura.
A minha vida profissional foi evoluindo e em 1974, depois do 25 de Abril, calculava prémios de seguros automóveis, punha clausulas, recusava seguros e atendia os Clientes.
A parte de atender Clientes era divertida porque era disputada entre Colegas sempre que alguém com um palminho de cara aparecia na recepção.
Uma jovem tinha sempre algum rapaz simpático que a ia atender e o mesmo acontecia quando aparecia algum engenheiro de olhos verdes que era disputado pelas jovens do Sector.
Um dia entraram porta dentro dois velhotes com um ar simples com a chamada boina portuguesa a cobrir a cabeça.
A situação era normal mas não parecia que houvesse de parte dos Colegas vontade de os atender.
Decidi-me e lá fui…
Depois da obrigatória Boa Tarde veio o óbvio:
-Em que vos posso ajudar? E os velhotes colocaram a boina debaixo do braço, respeitosamente, um ficando calado e respondendo o outro:
- Olhe menina eu queria fazer o seguro da minha carroça, fazem? É muito caro?
- Sim fazemos e não é caro!
Convém referir que naqueles tempos era vulgar vermos carroças cheias de legumes e frutas a caminho da Praça da Ribeira e depois de retorno aos arredores de Lisboa.
- Bem então vamos preencher a proposta de seguro que depois dará lugar à apólice que lhe será enviada pelo correio.
-Está bem menina!
Aquele menina soava-me engraçado, eu já tinha uma aliança no dedo. Peguei na proposta, numa esferográfica e perguntei:
- Quer o Senhor preencher ou preencho eu?
- A menina, se faz favor.
- Muito bem então eu vou fazendo perguntas e o Senhor vai-me dizendo o seu nome, morada…
- Sim menina, pergunte…
E assim fomos preenchendo até chegarmos aos riscos a cobrir… E digo eu muito convicta: 
- Qual o capital que pretende para o Risco de Responsabilidade Civil?
- Menina, o que é isso?
Rapidamente pensei, bem tenho que fazer isto de outra maneira, está visto que ele não sabe o que eu estou a falar.
 - Sabe são os danos que o Senhor causa aos outros, se bater num carro, num muro, se atropelar uma pessoa, o que nós chamamos os Terceiros…
- Pois, menina, é isso que eu quero que com um animal destes nunca se sabe!
Combinamos o capital a garantir e lá lhe expliquei que não cobríamos os Danos Próprios usando as palavras adequadas para que ele entendesse bem o que era.
Depois de tudo preenchido, perguntei se ele queria ler. Disse-me que não e então eu respondi que ia ler eu e se não estivesse de acordo com algo que me dissesse.
- Está tudo bem menina, é isso mesmo, muito obrigada!
Pedi-lhe então para ele assinar.
- Olhe menina eu trouxe este meu amigo para ele assinar, por mim!
O meu coração bateu mais forte. O Senhor era analfabeto mas na verdade era evoluído e eu não tinha até ali percebido.
Dirigindo-me a quem ainda nada tinha dito disse-lhe:
- O Senhor assina aqui a rogo com o seu nome e o seu amigo põe a impressão digital.

Esta foi para mim uma lição, seja com quem for que falamos temos que estar ao mesmo nível, ser educados, respeitosos, simples na forma de dizer as coisas. Não sabemos nunca se estamos perante uma pessoa que não sabe escrever o seu nome ou se estamos perante um administrador de uma empresa. Enquanto trabalhei procurei passar aos meus Colegas esta lição que eles ouviam com alguma curiosidade até porque entretanto as carroças foram desaparecendo para dar lugar a outros meios e a Praça da Ribeira já não é o que era!
 


segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

A história de cinco euros e uma Coca-Cola





Era já um fim de dia de Verão mas o calor era ainda abrasador.

No Supermercado uma garota de raça negra tinha na mão uma nota de cinco euros, um pacote de lombos de frango e uma garrafa de Coca-Cola fresca. Não era propriamente a da imagem mas sim da marca branca do Supermercado.

Disfarçadamente ia sendo observada por quem, à frente dela, estava na fila da caixa esperando pacientemente para pagar.

Via-se que nervosamente ia olhando o rótulo do pacote de frango e na outra mão girando a lata de bebida.

Quando se foi lentamente aproximando da caixa acabou largando a lata tão desejada junto de uma prateleira com bolos.

Quem a observava dirigiu-lhe então a palavra.

- Então não levas a lata de Coca-Cola?

- Não!

 Respondeu envergonhada…

-Pois, não te chega o dinheiro, não é?

- É!

- Mas tu querias, não querias?

- Queria, mas não faz mal!

- Vai lá buscar a lata, que eu dou-ta!

- Não, obrigada, não é preciso, não faz mal!

- Vá, vai lá anda!

Repetiu a mesma resposta.

- Vá vai lá anda não tenhas vergonha, vai depressa!

E ela foi, mesmo a tempo de quem a observava colocar a lata no seu cesto de compras.

A pessoa pagou e aguardou que a garota recebesse o pouco que sobrava dos lombos de frango.

Disfarçadamente passou-lhe a lata para a mão e recebeu um sorriso no olhar daquela criança com um brilho diferente acompanhado de um obrigada, tímido mas feliz.

- Agora diz à tua mãe que alguém te ofereceu a lata da Coca-Cola para que ela saiba como te foi parar às mãos.

Disse que sim repetindo o obrigada com o brilho do olhar.

Quarenta cêntimos fizeram a felicidade da miúda.

Não. não era Natal, era Verão e bem quente por sinal!









domingo, 13 de agosto de 2017


95 Anos

Querida Mãe os dois últimos anos foram anos de muitas dificuldades, contrariedades, desesperos mas passaram.
Eu nunca mais escrevi. Não tinha nada para contar porque tudo parecia negro e triste.
Hoje eu e o mano estamos felizes. Não queres festas e nós aceitamos.
Escolhi esta foto da tua recuperação propositadamente.Gosto muito de ti e mesmo de braço ao peito não quis deixar de escrever isto.
Não gosto que nos agradeças tudo o que fazemos, não queremos lágrimas, queremos apenas que estejas bem.
Não gostamos que digas que estás velha, a tua cabeça está esquecida porque não é verdade e a tua força de vontade é um exemplo para mim e para o mano quando nos vamos abaixo. Muitas vezes é de ti que nos vem a coragem.
Nós só queremos que sejas Feliz e que estejas entre nós muito tempo na companhia do safadito do teu Perri.




quinta-feira, 19 de março de 2015

Meu Pai...

Meu Pai...
Hoje é de novo o teu dia
É o que diz o calendário...

Mas, sabes Pai?
Para mim todos os dias são teus...
Pois se em todos te lembro!

E as saudades que não me largam...
Gostava tanto que viesses aqui...
Podia ser só um bocadinho...
Tempo para um beijinho...
Tempo para um abraço apertado...
Tempo para uma conversa...

Pois... não pode ser Pai, mas deixa...
Um qualquer dia estaremos juntos...
Quando?
Não sabemos Pai...
Mas o tempo passa correndo...
É um dia destes por aí...

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

26 de Novembro de 1956






Ao lado da porta do prédio onde eu morava com os meus pais e os meus tios havia uma loja de antiguidades. Ainda hoje existe embora com um aspecto diferente.

Além do dono da loja, esta era muito frequentada pelo Marquês de Pombal, homem grande, forte, que gostava de uma boa conversa e que, amigo da família, gostava de brincar comigo e saber como eu ía na escola. Era muitas vezes capaz de me sentar no colo e de me contar uma história.

Ao tempo a minha mãe estava grávida e eu queria há muito ter um irmão. Uma vez que naquela altura nunca se sabia o que ia nascer perguntavam-me sempre porque é que eu não queria uma irmã. 

Eu muito irritada explicava que queria um menino porque se fosse uma menina me estragava as minhas bonecas. 

Toda a gente tentava preparar-me para o eventual nascimento de uma menina e por vezes, quando me queriam ver arreliada,  diziam-me que seguramente era uma mana porque a minha mãe tinha a barriga com o feitio de uma menina. 


Num dia cinzento e chuvoso quando eu regressava da escola primária, tinha então sete anos e dez meses, resolveram pregar-me uma partida.


Lá estava o Sr. Santos e o Sr. Marquês de Pombal que me apanharam na curva e me chamaram: Anda cá, anda cá! Vai a correr que já tens lá em casa uma mana! É muito bonita!

Larguei-os logo com um NÃO QUERO aflito e subi a escada numa correria louca, sem olhar para trás. Se tivesse olhado teria percebido a malandrice.

Toquei à porta e veio abrir a minha tia que me viu sem folego e em pranto! Que foi que te aconteceu perguntou, alarmada. Por meio de soluços eu respondi: Tia eu não quero uma mana. Não Quero! E chorava, chorava...

Ó menina mas ainda não nasceu! E eu nada convencida disse-lhe: Ó tia mas o Sr. Santos e o Sr. Marquês disseram-me que eu já tinha cá uma mana muito bonita mas eu não quero!

Claro que a minha tia percebeu que me tinham pregado uma partida e fez tudo o que era possivel para me acalmar mas muito arreliada com a brincadeira. Não era para menos que eu não me calava! Lá me levou até ao berço para eu ter a certeza que ainda não havia bébé nenhum!

Quando o meu pai chegou a casa corri para lhe perguntar se já tinha nascido o bébé ao que ele, com um ar feliz, me disse que eu tinha um irmão! Foi a maior felicidade que eu tive até aquela idade e uma das maiores da minha vida até hoje!

Naquele tempo não deixavam as crianças ir à maternidade pelo que só vi o mano uns dias depois mas ele era lindo de morrer! Assim que chegava da escola ia a correr sentar-me na cama da minha mãe junto do berço e era aí que, sobre os joelhos eu fazia os trabalhos da escola.

Fazia questão de lhe mudar, e até lavar, as fraldas com a vigilância da minha mãe que não queria que eu as lavasse mas quando ela dava por isso já estava tudo num brinquinho!

Agora creio que me vão perguntar o que aconteceu às minhas bonecas! Claro que o deixei brincar com todas, furou a cabeça do meu Fernandinho que era o meu boneco preferido, brinquei com ele aos carrinhos, ajudei-o a montar Legos e amo-o muito. Como não tenho mais nenhum não sei se o poderia amar ainda mais, mas estou crente que não.

De vez em quando lá nos arreliamos especialmente porque ele não cuida da saúde convenientemente e isso é o que mais me custa e não lhe desculpo.

Tudo o resto corre às mil maravilhas e claro está que a minha tia ralhou com o Sr. Santos e o Sr. Marquês que já não pertencem a este Mundo há muito. Eu por mim acabei por lhes perdoar a partida.





domingo, 26 de outubro de 2014

25 e 26 de Abril de 1974


No dia 25 de Abril de 1974 tinha 23 anos e morava na Rua do Alecrim, no último andar do prédio a seguir ao Palácio Quintela, cujas traseiras dão para o jardim do Palácio e Rua António Maria Cardoso, avistando parte do cinema S. Luís.
Não tinha o hábito de ouvir o rádio de manhã e não me apercebendo de nada, desci para a R. da Prata onde trabalhava na antiga Companhia de Seguros Ultramarina. Durante o trajecto, achei alguns movimentos estranhos, as pessoas pareciam-me agitadas, diferentes, mas mesmo assim continuei e entrei no local de trabalho.
Aí falava-se num golpe de Estado, das janelas viam-se tanques no Terreiro do Paço. Comecei a achar a situação complicada. Lembrava-me do meu tio ter sido perseguido pela PIDE. Interrogava-me a mim própria: E se agora desatam todos aos tiros e temos aqui um banho de sangue? Deve ser inevitável, vão começar a lutar uns contra os outros. Estarão todos contra o Governo? Alguns começaram a dizer que tinham medo e iam para casa, outros que iam ver o que se passava.
Os tanques começaram a subir a Rua da Prata, os soldados e o povo que já se juntava a eles, ao passar em frente da Companhia, gritaram: Fascistas, fascistas, fascistas! Uma Colega grávida começou a gritar, branca como a cal da parede. Na minha aparentemente calma gritei com ela que quase desmaiava: ou te calas ou dou-te um par de estalos… olha a criança, como é que eu te tiro daqui se te dá alguma coisa? Consegui acalmá-la e entretanto chegou o marido que a levou. O meu veio um pouco depois. A Administração mandou fechar a Companhia e irem todos para casa.
Andei por becos e travessas onde havia pouca gente, mas lembro-me bem de ver o alcatrão da Rua da Prata todo rebentado pelas lagartas dos tanques.
Chegada a casa já estávamos todos e devorávamos tudo quanto se passava na televisão. Conforme os pontos-chave iam sendo ocupados, parecia uma vitória. Começaram a aparecer os cravos e o meu pai sempre tão calado parecia satisfeito. Eu pensava: se isto resultar, talvez o meu irmão não vá para a guerra, já me bastava terem ido os amigos.
Durante a tarde desse dia, por volta das 16 horas, ouviram-se tiros e o meu marido lembra-se como se fosse hoje de um homem que descia a Rua ter sido atingido mortalmente. Antigamente havia uns terrenos onde hoje existem os Terraços de Bragança, e o tiro veio da PIDE. Esse facto deu conta do meu sistema intestinal e corria para a casa de banho que ficava nas traseiras e cujas portadas foram fechadas por indicação do meu pai, com ordens de ninguém acender a luz.
Pela Rua do Alecrim começou a subir uma multidão que gritava: morte aos PIDES! Recomeçaram os tiros e houve mais mortes. Isso oiço ainda na minha cabeça. Mal dormimos com receio de que soldados e PIDES andassem em cima dos telhados, porque o desespero já era grande.
O dia seguinte revelou-se uma autêntica surpresa. Chegados à janela, havia tanques no Camões, tanques ao fundo da rua, morteiros montados em frente ao Palácio no Largo Barão de Quintela.
Nunca tinha visto morteiros e perguntei ao meu marido o que era aquilo. A explicação deixou-me apreensiva. Ninguém passava na Rua e os soldados não deixavam ninguém estar nas janelas. Comecei a pensar que os morteiros podiam não ser certeiros e fazerem um buraco no nosso telhado. A minha mãe achou que eu tinha razão e o meu pai começou a ficar inquieto, o meu irmão com 15 anos estava menos consciente do perigo.
O meu marido decidiu ir falar com os soldados para saber o que fazer. Considerando que estávamos no último andar e os PIDES ainda não se tinham rendido, poderia haver necessidade de dispararem. Fizeram uma reunião e decidiram que seríamos retirados de casa com a sua protecção. Assim foi feito, em fila indiana, um soldado para cada um, encostados aos prédios e passando para o Largo Barão de Quintela onde o meu pai tinha o carro estacionado.
Assim saímos dali, mas o curioso é que no resto da cidade a vida parecia correr normalmente, com cravos vermelhos e risos abertos. Fui a única pessoa que não trabalhou nesse dia, mas viu a sua falta justificada pelos patrões apelidados de fascistas.